Desde o início da pandemia da Covid-19, procuramos nesse blog traçar cenários futuros para auxiliar os leitores viajantes. Não temos bola de cristal, mas creio que conseguimos acertar em muitas das nossas previsões, as quais foram elaboradas com base em nossa experiência de viagem e no acompanhamento do noticiário, nacional e internacional.
Comentamos, por exemplo, sobre desistir ou não de viagens ao exterior, sobre agências vendendo pacotes “baratos”, sobre a retomada responsável das viagens e sobre a possibilidade de viajar ao exterior em 2021. Nosso compromisso sempre foi com o turismo responsável, recomendando, muitas vezes, que o turista se abstivesse de viajar, a despeito da enorme vontade de sair de casa.
Neste artigo, discutiremos um outro tema muito sensível e que tem muito a ver com a evolução da pandemia no Brasil: os brasileiros sofrerão preconceito ao viajarem ao exterior?
O preconceito em tempos de pandemia
Preconceito (pré + conceito) é o “ato de julgar algo ou alguém sem conhecer o objeto do juízo” [1]. É “uma opinião ou ideia formada sem conhecimento ou reflexão” [2]. É “uma opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos mas que é baseada unicamente em um sentimento hostil motivado por hábitos de julgamento ou generalizações apressadas” [3]. Enfim, preconceito é sinônimo de pré-julgamento e de intolerância. Tem origem na ignorância ou simplesmente na má-fé.
Todos nós manifestamos algum tipo de preconceito, com maior ou menor intensidade, sob os mais diversos tipos: de cor, raça, origem, religião, classe social, profissão, etc. Mesmo ativistas contra o preconceito também manifestam outras formas de pré-julgamento.
Mas, o advento da pandemia da Covid-19 fez brotar o pior do ser humano em termos de preconceito e xenofobia. Pode-se afirmar, inclusive, que o preconceito (e a desinformação) foi outra pandemia global, pois atingiu todos os continentes e foi dirigido contra diversos povos.
Os povos asiáticos foram os que mais sofreram com o preconceito, em especial, os chineses. E o preconceito ganhou impulso nos países ocidentais com as falas de líderes e políticos populistas, que passaram a utilizar expressões como “vírus chinês”, “vírus de Wuhan”, “perigo amarelo” (jornal Le Courier Picard – França) ou “kung flu”. Seja por TVs e jornais sensacionalistas, seja pelas redes sociais, predominou-se a disseminação de fake news e preconceitos acerca de hábitos alimentares dos chineses.
Importante observar que, mesmo dentro da China, houve preconceito contra os moradores da cidade de Wuhan, o epicentro da pandemia. E, mesmo na Ásia, houve manifestações de xenofobia contra pessoas de origem chinesa.
Só em 2015, a OMS e a FAO adotaram diretrizes para a denominação de novas doenças infecciosas que atingem os seres humanos. Os nomes de doenças não podem incluir localizações geográficas (ex. “gripe espanhola” ou “microencefalia brasileira”), nomes de pessoas, espécies de animais ou alimentos, referências culturais, demográficas, industriais ou termos que despertem medo, tais como, “desconhecida”, “fatal” ou “mortal” (fonte: Deisy Ventura).
Ao pesquisar sobre o assunto, fiquei impressionado com o número de casos de racismo e xenofobia catalogados pela imprensa internacional. Novamente, os principais alvos foram os povos asiáticos, mas cidadãos americanos ou europeus de origem asiática também sofreram com essas manifestações xenofóbicas, independentemente de sequer terem ou não pisado no continente asiático.
Faço um resumo desses episódios a seguir:
- ofensas xenofóbicas nas ruas;
- charges;
- recusa de atender clientes de origem asiática nos hotéis, restaurantes, estabelecimentos comerciais, e até consultórios médicos (Alemanha);
- ameaças;
- ataques violentos, inclusive jogando desinfetante em pessoas de origem asiática;
- quedas nos atendimentos e vendas em restaurantes e supermercados chineses ou relativos a outros países asiáticos;
- suspensão de lições de música no conservatório para alunos asiáticos (Itália);
- batidas policiais dirigidas a cidadãos chineses (Rússia);
- submissão de japoneses a quarentena compulsória mesmo sem apresentar sintomas relacionados à Covid-19 (Bolívia).
Nos Estados Unidos, o FBI frustrou a tentativa de um supremacista branco de usar um carro-bomba e explodir um hospital lotado com pacientes da Covid-19 no estado de Missouri.
Diante disso, o que mais espanta é ver que líderes, governos e instituições da sociedade civil, que deveriam atuar para mitigar o problema, acabaram acentuando a xenofobia e o racismo. Poucos foram os que agiram de modo contrário, merecendo destaque o Primeiro Ministro Canadense Justin Trudeau.
Se isso tudo já não bastasse, o racismo e a xenofobia também desviaram a atenção da população para o que realmente importava: o combate à pandemia.
Não é à toa que, nesse momento, a pandemia está controlada na China e na maioria dos países asiáticos, permitindo a retomada da economia, o que não acontece em muitos países ocidentais, como é o caso do Brasil.
Nesse sentido, Deisy Ventura foi muito feliz ao afirmar que: “A pandemia não pode servir como um salvo-conduto para o racismo e para a xenofobia, não apenas por um imperativo ético, mas igualmente porque o estigma reduz a eficiência da resposta à doença”.
Um exemplo de como esse tipo de sentimento prejudicou a eficácia do combate à pandemia encontra-se na demora em adotar e recomendar a utilização da máscara facial. Há tempos, a máscara é um item muito comum utilizado nos países asiáticos para prevenir a transmissão de doenças respiratórias. Faz parte da cultura de muitos países e poderia ter sido usado no ocidente logo no início da epidemia.
Atuação do Brasil no combate a pandemia
Não preciso dizer que a atuação do Brasil no combate à pandemia foi decepcionante.
Recomendações dos especialistas, tais como, o controle sanitário das fronteiras (Brasil só passou a exigir testes de Covid para ingresso no país em 30/12/2020), o rastreamento de contatos (contact tracing), a testagem e o isolamento social foram deixadas de lado em detrimento de protocolos de “tratamento precoce” sem nenhuma evidência científica (kit Covid).
Por sua vez, a vacinação anda a passos muito lentos, muito em razão da falta de planejamento do Governo Federal, responsável pela gestão do Programa Nacional de Imunização (PNI).
Com 5% da população vacinada (15 milhões de doses), o país é 50° no ranking mundial de vacinação em proporção da população, mesmo com toda a experiência de anos de vacinação.
Para se ter uma ideia, os Estados Unidos já aplicaram 115 milhões de doses em apenas 58 dias. Por sua vez, o Chile, um país com 9% da população brasileira, já teve mais de 8 milhões de doses aplicadas, sendo considerado o 4° no mundo.
No momento em que escrevo este artigo, o Brasil já computou mais de 11,8 milhões de casos de Covid-19 e mais de 290 mil mortos em razão dessa doença. Quanto ao número absoluto de casos e mortes, o país é o segundo no ranking mundial.
Vivemos agora o auge da epidemia, com o colapso do sistema de saúde e UTIs lotadas. A fase vermelha se espalhou por quase todos os estados da federação.
Mas, o que mais assusta o mundo em relação ao Brasil é o surgimento de novas variantes do Sars-Cov-2, potencialmente, mais transmissíveis e mais agressivas.
Segundo os especialistas, quanto mais o vírus circula, mais surgem mutações, que podem melhor se adaptar ao corpo humano.
Por enquanto, as variantes são a P.1. (descoberta em Manaus) e a P.2. (descoberta no Rio de Janeiro), as quais começam a tornar-se predominantes em todo o país.
Diante disso, o Brasil já é considerado uma “ameaça global” por ser uma “fábrica de variantes superpotentes”. Isso, com certeza, vai impactar a vida do viajante brasileiro ou de qualquer um que venha do Brasil.
O que esperar nas viagens ao exterior?
Mark Twain, escritor americano, dizia que “viajar é fatal para o preconceito, para a intolerância e para a pobreza de espírito”. Mas, isso é um aprendizado para o viajante e, nem sempre, para quem o recebe em seu país.
A pandemia acarretou um trauma muito grande nas pessoas mundo afora e, como visto, a atuação do Brasil nesse tema foi decepcionante. Qualquer um que venha do Brasil será visto como um potencial transmissor da Covid-19 e de uma mutação muito mais perigosa.
Em razão disso e do que aconteceu anteriormente com os asiáticos, o viajante brasileiro ou originário do Brasil deve esperar algum tipo de discriminação no exterior, que pode vir da sociedade ou das autoridades locais.
Um primeiro tipo de discriminação é a explícita: você nem pode embarcar para o país, mesmo com testes negativos para a Covid-19.
Atualmente, o Brasil é o 2º país com maior número de restrições para entrada em destinos internacionais em razão das variantes do Sars-Cov-2, só perdendo para a África do Sul. São 17 países que não aceitam a entrada de pessoas ou voos que passaram pelo território brasileiro (leia aqui).
Essas restrições explícitas, em geral, não acarretam muitos transtornos para o viajante. Afinal, você nem vai viajar para lá! A única hipótese é haver alguma mudança abrupta nas regras de entrada pelo país de destino. Neste caso, você poderá perder algum dinheiro investido na viagem.
O pior tipo de discriminação é a velada, pois, pela própria natureza, pode pegar o viajante desprevenido.
Começa na própria chegada ao país. Mesmo que o país esteja aberto a brasileiros, o agente de imigração pode inadmiti-lo no país, sem precisar justificar a sua inadmissão. A crise econômica gerada com a pandemia também pode fazer com que muitos brasileiros busquem trabalhar ilegalmente no exterior, o que será um novo motivo de alerta para as autoridades migratórias.
Mesmo que você for admitido, as autoridades sanitárias podem exigir que você faça novos testes ou que se submeta a uma quarentena obrigatória, ainda que não esteja expressamente prevista. Nessa hipótese, se a duração da sua viagem for menor que 2 semanas, você vai passá-la integralmente num quarto de hotel.
Nos estabelecimentos, tais como, hotéis e restaurantes, você também pode enfrentar algum tipo de preconceito, gerando recusa de atendimento. Entretanto, creio que seja menos provável, pois o setor de turismo precisa se recuperar e, nem todo mundo sabe de onde você vem.
Também por esse último motivo, não acredito que você deva sofrer ofensas ou ataques xenofóbicos nas ruas. Diferentemente dos asiáticos, os brasileiros tem características fenotípicas muito variadas.
De qualquer forma, tudo vai depender de como vai estar a situação da pandemia, no Brasil e no destino internacional. Enquanto o Brasil estiver no foco do noticiário internacional, não espere ser bem recebido lá fora.
O que fazer para mitigar os preconceitos?
Não é possível impedir preconceitos ou atos de xenofobia e racismo, mas é possível mitigá-los, adotando algumas cautelas.
Em primeiro lugar, não viaje ao exterior antes que a epidemia esteja controlada no Brasil e no país de destino. Esqueça 2021!
Ao escolher seu destino no exterior, opte por um país que dependa do turismo de brasileiros. É o caso, por exemplo, de muitos países da América do Sul. Nesses países, pode haver uma expectativa de ser bem tratado pelas autoridades e nos serviços em geral. Ademais, viaje para um único país.
Esteja com a documentação de saúde em dia. Se tiver a oportunidade, se vacine contra a Covid-19 e traga o certificado correspondente. Traga os comprovantes de exames RT-PCR negativos, ainda que não sejam exigidos pelas autoridades locais. Caso tenha contraído a Covid-19 no passado, traga também o resultado dos exames. Além disso, não esqueça de trazer o seu seguro-saúde com cobertura para a Covid-19.
Dessa forma, você minimiza as chances de ser submetido, pelas autoridades do país, a quarentenas obrigatórias que não estejam previstas anteriormente.
Por fim, mostre que você é um viajante responsável. A utilização de máscaras em locais de uso coletivo (transporte público, comércio, locais de eventos) será uma medida importante mesmo no pós-pandemia. Afinal, nunca se sabe quando poderá surgir uma nova pandemia.
Mantenha, sempre que possível, o distanciamento das pessoas. Evite aglomerações. Siga, rigorosamente, os protocolos de biossegurança que forem adotados no destino.
Enfim, deixe claro que nem todo brasileiro é um aliado do coronavírus.